FILOSOFIA_DE_GAVETA

domingo, 3 de maio de 2009

Re-ligação amorosa

Texto: Liane Alves

A concepção de Deus que temos na infância não pode perdurar: “Como tudo, ela precisa evoluir”, diz o padre Ivo Storniolo, que há mais de 40 anos se dedica ao estudo da Bíblia, o livro no qual, segundo judeus e cristãos, está a fala de Deus.
Formado pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma, o padre Ivo também deu aconselhamento religioso-psicológico durante 12 anos, mostrando como percorrer o caminho para falar com Deus. Nesse trabalho, o sacerdote usava elementos propostos pelo suíço Carl Gustav Jung, criador da psicologia analítica, cujas teorias consideram o ímpeto para a religião um dos aspectos importantes da psique. Aqui, o padre Ivo Storniolo fala sobre o amor divino no ser humano, tema por ele apresentado no XV Congresso Internacional da Associação Junguiana do Brasil, realizado em setembro de 2007, na cidade de Atibaia, em São Paulo.

BONS FLUIDOS – A maioria de nós percebe Deus como um Criador distante e inalcançável. É possível mudar isso?
PE. IVO STORNIOLO – Em matéria de religião, a maioria das pessoas permanece com o que aprendeu da mãe, no berço da vida, ou, quando muito, com o que aprendeu no primeiro catecismo. No mais, crescem em tudo, menos na religião, ou seja, na sua ligação com Deus elas continuam infantis. Por isso, na hora difícil, quando não há mais saída, primeiro fogem para a mãe, ou a chamam, e só depois apelam para Deus. Na verdade, Deus está sempre próximo, e até mais próximo de nós do que nós estamos próximos de nós mesmos. Ele está sempre presente. Nós é que podemos estar distantes dele. Se Deus nos abandonasse por segundos, sem dúvida simplesmente deixaríamos de existir. Mas como podemos nos aproximar de Deus? Muito simples. Se Deus é o Criador, Ele está continuamente nos criando. A Bíblia judaico-cristã, por exemplo, relata, em linguagem figurada, que Deus cria o ser humano como um oleiro que faz um vaso de barro e depois sopra em suas narinas o sopro da vida. Quem viu um oleiro sabe o quanto de “sabença” e carinho ele tem em seu trabalho. É com a mesma sabedoria e carinho que Deus está nos formando agora e, neste exato momento, continua soprando o alento que nos deixa vivos. Há forma mais simples de contar o mistério da criação e da continuidade de nossa vida, ou forma mais bonita de dizer que Deus nos cria com sabedoria e amor? E isso está acontecendo agora!

BF – Deus pune realmente? Como?
IS – Achar ou imaginar que Deus nos pune é um exemplo de nossa total mesquinhez. Quando você, com amor, cria um ser e o mantém sempre vivo, respirando, você gostaria de castigá-lo? Embora possamos fazer isso, não podemos aplicar a Deus a medida de nossa mesquinhez. Ele pode ser percebido como fonte de vida e de liberdade. Nós é que nos punimos, quando nos afastamos dele para buscar em outros lugares, vazios, a liberdade e a vida que vêm de Deus. É assim que nos esvaziamos, ou melhor, que ficamos perdidos em uma vida sem sentido e sabor. O pior é que somos teimosos. Construímos nossas prisões e nelas ficamos, batendo a cabeça nas grades...

BF – O que seria um relacionamento saudável com o divino?
IS – As religiões são meios pelos quais podemos curar nossa ruptura com o Grande Mistério, meios para nos religarmos a ele. Religião significa “re-ligação”. Elas mostram o como, ou melhor, as leis para realizar isso. Não esqueçamos, porém, que as religiões são meios e não fim em si mesmas. O essencial é nos lembrarmos que Deus espera nossa resposta de amor incondicional. Mas nossa fantasia, em geral, é a de que, se o amarmos incondicionalmente, não sobrará amor para os outros... Ou isso, ou aquilo. Isso é bobagem, pois o amor não tem limites. Amor verdadeiro é isto e aquilo, e não existe isso de amar mais ou amar melhor. O amor existe ou não existe.

BF – Orar virou sinônimo de pedir a Deus. Qual a verdadeira oração?
IS – Toda oração é verdadeira porque expressa a verdade de cada um. Se a maioria das orações con siste em pedir algo, isso po de significar diversas coisas. Pode significar que achamos que “Deus está por fora” e precisamos lembrá-lo do que precisamos... (risos) Pode também dizer que nossa religião ficou na infância: a criança não é um feixe de necessidades e pedidos? O Evangelho lembra que Deus “sabe do que é que vocês precisam antes que vocês façam o pedido” (Mt 6,8). Se acreditarmos nisso, viveremos na confiança e na serenidade. Se confiarmos na presença e na atenção do divino para conosco, estaremos sempre em oração.

BF – Como a inteireza se relaciona com nosso amor ao próximo?
IS – O mandamento do amor ao próximo inclui o inimigo. Para Deus não há distinção entre “próximo amigo” e “próximo inimigo”. Ao contrário: Deus é íntegro porque beneficia a todos. E daí vem o imperativo categórico: “Sejam íntegros, como é integro o Pai de vocês, que está nos céus”. Em outras palavras, a integridade de Deus questiona todas as barreiras e divisões que construímos entre nós, principalmente as barreiras de nossos preconceitos.

BF – Qual o passo mais difícil para essa “re-ligação”?
IS – Abdicar do ego, que sempre está no controle e é favorável ao egoísmo. O ego sofre por querer ser deus e se torna um falso deus. Mas o ego pode se tornar um ótimo servidor se conseguirmos convencê-lo a servir ao verdadeiro Senhor, que é o Amor.



fonte:

http://bonsfluidos.abril.uol.com.br/livre/edicoes/0105/07/07.shtml

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